Por Andréa Huguenin Botelho*
É com imensa alegria que apresentei na capital alemã em novembro de 2024 a estreia mundial de uma das minhas obras mais complexas escritas até hoje.
A “Cantata Ayabás“ é o resultado de cerca de quatro anos de dedicação e paixão pela música e cultura afro-brasileira. Inspirada pela riqueza cultural e histórica do Brasil, esta cantata traz a música brasileira para o palco, celebrando suas raízes e diversidade.
Como compositora da "Cantata Ayabás", gostaria de compartilhar algumas reflexões sobre o processo de criação desta obra. Este projeto nasceu do desejo de muitos anos e pela profunda reverência e admiração pelo legado cultural dos povos Iorubá, que contribuíram significativamente para a formação da identidade brasileira. Foi uma honra expressar musicalmente essas histórias, celebrando as divindades femininas dessa rica mitologia afrobrasileira.
O meu grande objetivo foi compor uma obra que enriquecesse o cenário da música de concerto, apresentando a qualidade da diversidade cultural do Brasil. O resultado deste desafio de anos de pesquisa profunda e trabalho superou a expectativa. O sucesso foi impactante e muito positivo na cidade. Recebi muitos feedbacks positivos, por parte dos músicos, cantoras, assim como do público e críticos musicais de Berlim.
Esta obra não apenas valoriza o patrimônio cultural dos países africanos que estão presentes no Brasil, resistindo para manter a sua riquíssima herança viva e resistindo ao preconceito e discriminações mas também marca historicamente como sendo a primeira obra neste teor apresentada na capital alemã.
A Cantata Ayabás traz inovação e enriquece o cenário europeu com a sua diversidade sonora e narrativas afrobrasileiras.
Esta foi uma das minhas obras mais complexas escritas até hoje.
Usei como base para criar esta obra as histórias e o legado de diversos povos de matrizes africanas, especialmente os iorubá. Especificamente me dediquei ao universo feminino dessas histórias em seu sentido mais amplo. Mergulhei profundamente na mitologia afrobrasileira, celebrando as divindades femininas conhecidas como no Brasil como Orixás. Primeiramente me aprofundei no estudo dos arquétipos e narrativas de cada divindade, respeitando suas histórias e heranças culturais. A cantata, com suas técnicas musicais contemporâneas e harmonias modais, reflete a conexão profunda com a riqueza da cultura afro-brasileira. A maioria dos textos das canções foi escrita por mim em Iorubá, exceto “Odo yá, Yemọjá” e "Wura omi ẹwa".
Estrutura e Instrumentação da Cantata
A "Cantata Ayabás" foi escrita para coro feminino, solistas (soprano e contralto), orquestra sinfônica e percussão brasileira, para o contexto da música de concerto.
Composta por oito movimentos, cada um destaca o caráter marcante de cada divindade. A análise e interpretação foram determinantes para a escolha da orquestração de cada movimento:
Saluba, Nanã - Criadora do mundo (Solistas, coro feminino, orquestra e percussão).
Rirọ, Ewá - Guardiã das fontes de água (Coro feminino, orquestra e percussão).
Ṣirè, Obá! - Defensora dos direitos das mulheres (Solistas, feminino, orquestra e percussão).
Oṣun - wura omi ẹwa - Deusa da beleza e das cachoeiras (Solistas, coro feminino e orquestra + Ária Contralto, orquestra e percussão).
Epàhey, Oyá! - Soberana das tempestades e trovões (Soprano, coro feminino, orquestra e percussão).
Yemọjá, Iya òkun - Mãe de todas as criaturas e rainha do oceano (Ária Soprano, orquestra e percussão).
Yemọjá - Lamento de Yemọjá pelo mundo (Solo de orquestra sem percussão).
Odoyá, Yemọjá - Prece dos pescadores para Yemọjá (Solistas, coro feminino, orquestra e percussão).
Instrumentação
Orquestra Sinfônica: Flautas (2), Oboés (2) - Corne Inglês (1), Clarinetas em Si bemol (2), Fagote (1), Trompa em Fá (1), Trompete em Si bemol (1). Seção de cordas (mínimo de 5 primeiros violinos, 4 segundos violinos, 4 violas, 4 violoncelos e 2-4 contrabaixos com divisi para contrabaixo de 5 cordas).
Percussão: 3 Atabaques, agogô e outros instrumentos de percussão brasileira como Caxixi e Xequerê.
Coro: Coro feminino a três vozes - SSA (mínimo de 30)
Solistas: Soprano e Mezzo Soprano (ou Contralto)
Decisões Composicionais
Vozes femininas: Escolhi somente vozes femininas para interpretar a obra, centrando na ideia de descrever o caráter e arquétipo das divindades selecionadas.
Solistas: Entre os movimentos de 1 a 5, representam as divindades, enquanto o coro representa os seres humanos que as reverenciam.
Ária dedicada à Yemọjá: A ária número 6, dedicada à soprano brasileira Adriane Queiroz, foi concebida para que a cantora simbolicamente entre no oceano em busca de Yemọjá, pedindo que ela cure a humanidade.
Lamento de Yemọjá: A obra número 7 expressa um lamento sem texto, significando a impotência de Yemọjá em curar a humanidade, uma tarefa reservada aos próprios seres humanos.
Percussão Brasileira: Decidi integrar a textura sinfônica com instrumentos de percussão brasileiros, para que a riqueza rítmica seja cada vez mais presente na música de concerto.
A Escolha da Língua Iorubá/ Yorùbá
A concepção que se tem do país é a de que aqui se fala uma única língua, a língua portuguesa. Ser brasileiro e falar o português (do Brasil) são, nessa concepção, sinônimos. Trata-se de preconceito, de desconhecimento da realidade ou antes de um projeto político - intencional , portanto - de construir um país monolíngüe? (Gilvan Müller de Oliveira, lingüista da Universidade Federal de Santa Catarina)
Há anos defendo o argumento que as línguas brasileiras, além do português, deveriam ser estudadas e valorizadas como patrimônio fundamental do Brasil. Somos um país plurilíngüe. Entre as mais de 200 línguas faladas neste país, considero o iorubá uma delas. Oficialmente, o iorubá é reconhecido no Rio de Janeiro oficialmente como um dos patrimônios linguísticos em âmbito estadual e a cidade de Salvador, na Bahia reconhece esta língua como patrimônio cultural imaterial*.
Parto do princípio que, por conta da colonização o português se tornou a língua oficial do Brasil, o iorubá, como outras línguas da diáspora africana, devem ser reconhecidos e valorizados em âmbito nacional como parte do vernáculo brasileira, assim como as outras línguas nativas.
A língua iorubá, com sua profunda conexão com as religiões afro-brasileiras como o candomblé, é uma parte vital desta obra.
Com cerca de 45 milhões de falantes no mundo, o iorubá é um testemunho vivo da resiliência cultural e da influência africana no Brasil. A diversidade linguística existente no Brasil é uma herança riquíssima, que precisa ser mais valorizada, um dos patrimônios culturais inestimáveis deste país. De acordo com Oliveira (2008), o Brasil poderia ter se tornado um país ainda mais plurilíngue, se não fossem as ações repetidas do Estado contra a diversidade cultural e linguística. No entanto, ele argumenta que o Brasil não é apenas um país multicultural e plurilíngue, mas permanece pluricultural e multilíngue. Isso se deve não apenas à diversidade atual de línguas faladas no território, mas também à rica diversidade interna da língua portuguesa, que muitas vezes é obscurecida por outro preconceito de que o português é uma língua sem dialetos. (OLIVEIRA, 2008, p. 8)
Embora eu não seja fluente em Iorubá, ter tomado tempo para aprender um pouco dessa língua enriqueceu imensamente minha conexão com as raízes do Brasil. Lamentavelmente, poucas escolas no Brasil ensinam outras línguas brasileiras além do português, o que priva muitos do entendimento mais profundo de nossa diversidade cultural.
Estreia em Berlim e Agradecimentos especiais
A cantata estreou com grande sucesso em Berlim, nos dias 09 e 10 de novembro de 2024 no Teatro do Schloss Britz, imergindo o público de mais de 700 pessoas em dois dias, em 50 minutos de música. Este evento foi um exemplo de colaboração intercultural, envolvendo artistas de 19 países e com parcerias fundamentais como o Schloss Britz e Musikschule City West, assim como a participação dos coros Ayabás Chor Berlin e Chora Berlin, além das solistas da Staatsoper Adriane Queiroz e Natalia Skryzca. A orquestra foi formada por músicos excepcionais da Komische Oper, Deutsche Oper, Musikgymnasium Carl Phillip Emanuel Bach, Georg-Friedrich-Händel-Gymnasium e Musikschule City West. Os percussionistas foram os brasileiros Amoy Ribas, Leonardo Oliveira e a alemã Clara Carl.
Gostaria de expressar minha profunda gratidão a regente coral Elizabeth Schubert, cuja parceria foi essencial para este projeto, e a todos os músicos e cantoras envolvidos. Agradeço também ao Schloss Britz, em especial a Martin Steffens e Nora Kasparick, pelo apoio inestimável, e aos amigos que me apoiaram: Erick Sabino, Newton Gmurczyk, Udo e Monika Krzyzynski, Augusto Medeiros, Inga Scharf da Silva e Gudrun Havemann. Meu sincero agradecimento à Musikschule City West por seu inestimável apoio. Tenho muito orgulho de fazer parte do corpo educacional desta instituição há mais de 10 anos e de ter criado o Programa Música Brasileira in der City West no ano de 2016. Por fim, sem o apoio e amor incondicional da minha família, especialmente Marcos, Duda, Ioio e Pipo Botelho, nada disso seria possível.
Sobre os povos Iorubás - Yorùbás e seu Legado
A herança cultural que o Brasil herdou dos povos Iorubás, um dos principais grupos étnicos da África Ocidental vai muito além da mais conhecida, que são nas religiões Afro-brasileiras. Sua influência no Brasil é profunda, tendo impactado nossa língua, culinária, religiosidade e música. Originários de uma tradição agrícola milenar, os Iorùbás construíram cidades como Ifé, que se destacaram pela habilidade artesanal em metais, madeira e marfim.
A autora Oyèrónké Oyewùmí, em seu livro The Invention of Women, discute a cultura Iorubá, defendendo que esta sociedade não era organizada por gênero, mas por idade. Segundo Oyewùmí, o gênero específico não existia na língua iorùbá, o que sugere uma multiplicidade de possibilidades de organização social.
As descrições das divindades definem arquétipos da natureza e poderes humanos, como a maternidade. A colonização britânica, a diáspora e a miscigenação podem ter influenciado a introdução de conceitos de gênero nas culturas derivadas em outros países. Minha base foi traduzir musicalmente os arquétipos e a mitologia das divindades do Candomblé afro-brasileiro. Vale aqui salientar que o candomblé é uma religião brasileira de matriz africana.
É crucial priorizar a reparação histórica sobre a catástrofe humanitária que foi a diáspora africana no mundo.
Mitologia
As mitologias iorubá, grega e nórdica oferecem visões distintas do mundo e da humanidade. O meu recorte para a composição foi a parte mitológica, separando o conceito de fé das religiões da matrizes africanas existentes no Brasil. Esta posição foi no intuito de respeitar o merecido espaço da fé e das pessoas que as praticam. Assim como hoje em dia outras mitologias fundamentam filmes, livros e óperas com respeito e seriedade, a mitologia iorubá também merece essa valorização. Apesar de suas diferenças, todas as narrativas mitológicas explicam fenômenos naturais, transmitem valores culturais e fornecem modelos de comportamento humano. O legado iorubá é precioso. Estudar e celebrar a mitologia iorubá promove um entendimento mais completo de nossa história e valoriza a contribuição inestimável dos povos africanos à cultura mundial.
Considerações Finais
A Cantata Ayabás transcende fronteiras culturais e musicais, incorporando a mitologia Iorubá em formato de música de concerto. Esta obra traz um convite a refletir sobre a beleza e o legado inestimável da cultura afro-brasileira. Estará em breve disponível nas plataformas. Alguns trechos estao disponíveis no instragram @maestra.andreabotelho
Referências e Links
Abimbola, Wande. Yoruba Oral Tradition. Ìbàdàn: Oxford University Press, 1975.
Awe, Bonlale. Nigerian Women in Historical Perspective. Lagos: Sankore, 1992.
Fadipe, N. A. The Sociology of the Yoruba. Ìbàdàn: Ìbádán University Press, 1970.
Oyewumi, Oyeronke. The Invention of Women: Making an African Sense of Western Gender Discourses. University of Minnesota Press, 1997.
Oliveira, Gilvan Müller de. Plurilingüismo no Brasil, Brasilia, 2008.
Olunpona, Jacob K., ed. African Traditional Religions in Contemporary Society. New York: Paragon House, 1991.
Sites em português:
Com carinho,
Andréa Huguenin Botelho
Comments